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31. ULTRA TRAIL DA LOUSÃ - SERRA DE EMOÇÕES

 


Serra de emoções. Assim se auto designa a Serra da Lousã. Bem verdade. Das emoções mais fáceis às mais difíceis de gerir.
A minha participação no Ultra Trail da Lousã, 45 Km em 9h30, +3.350m de desnível, contribuiu fortemente para a minha literacia emocional.

Alimentei três medos na preparação para esta prova:
1. Medo do frio. O último aviso da organização, foi sobre a expectativa de neve acima dos 800m. Subimos aos 1.200m.
2. Medo das bolhas nos pés. A minha experiência no Ultra Trail da Serra da Freita deixou-me com muitas mazelas e um tempo considerável e doloroso de recuperação.
3. Medo de não conseguir cumprir com as quatro barreiras horárias impostas pela organização. Tendo em conta o meu ritmo, o facto de esta ser a prova com mais desnível de sempre e o nível competitivo do evento, sabia que ía ser difícil.

Os dois primeiros medos, foram os mais fáceis de ultrapassar. Depois de estar em movimento, já sei por experiência que o frio deixa de ser um problema. Portanto a racionalização sobre o meu conhecimento, ajudou-me a minimizar esta preocupação. As bolhas, preveni-as colando nos pés uma quantidade generosa de pensos de "pele artificial" que operaram milagres ao longo do dia. Não evitaram a dor a partir dos 20 km. Mas impediram as mazelas. Cheguei ao fim com apenas uma bolha num dos poucos sítios onde não tinha proteção.

Sobre o medo de não cumprir com as barreiras horárias, fui a 6ª e última do meu escalão a terminar a prova dentro do tempo limite - 10h. Consegui chegar a todos os pontos com uma margem confortável, não fiz sala e segui caminho o mais rápido que consegui, depois de reabastecer. O meu foco foi sempre aproveitar o tempo que ganhei para o troço seguinte. Concluo que fiz uma boa gestão. Adequada ao meu ritmo e capacidade.

Mas o mais importante sobre o medo, é que durante a prova, tudo o que senti antes e os seus efeitos - insónias, preocupação, dúvida... deixou de fazer sentido. Como se houvesse um desfasamento entre o imaginário e o que acontece assim que se torna real. O ponto de perigo máximo, é sem dúvida o ponto de menos medo. Assim que enfrentamos o medo e pomos as mãos na massa, deixamos de precisar dele. E descobrimos efetivamente que as melhores coisas da vida estão do outro lado do medo. 
Nas Conversas com o Medo, falo sobre este e outros temas. 

Outras aprendizagens:

1. A noite vai cair a qualquer momento. Sensação que tive desde as 8h. Não sei se pelo peso das nuvens cinzentas que nos acompanharam a curta distância ou se pela escuridão efetiva nas zonas mais densas e fechadas das florestas que percorremos. Ou talvez pela minha preocupação com as barreiras horárias. 

2. De costas quentes! Disse à minha amiga Fátima Emauz que não me imaginava a embarcar nesta aventura sem ela. Tal como na Freita, a Fátima, a Maria João Borges e o Cláudio Tereso, acompanharam-me. De alma e coração. Desde os preparativos de véspera e na madrugada da prova, à sua presença nos pontos de passagem, sempre disponíveis para tudo e mais alguma coisa. Sem saberem, matavam-me a sede mais importante de todas: aquela que rega a alma e enche o coração. 

3. Subir esferas. Longe de ser a minha ideia de diversão! A parte mais dolorosa da prova foi entre o Km 23 e o 33. Coincidiu com a subida aos 1.200m. Demorei 45 minutos para fazer 2 Km. Senti pela primeira vez na vida que estava a subir uma esfera. Aquela sensação de andar e não sair do mesmo sítio. Olhar para cima e não ver a luz ao fim do túnel. Senti muita coisa forte. Raiva, zanga, frustração, desilusão. A esperança aproximou-se quando vejo a copa de um pinheiro e finalmente vejo a árvore a crescer de cima para baixo. Sinal de que esta subida maldita estava finalmente a terminar.
Ainda assim, não consegui libertar-me de tudo o que ainda estava a sentir. Passados poucos km e já a chegar ao 3º abastecimento, vejo os meus amigos. Sem cerimónia, e ainda a rebentar de emoções intensas liberto tudo o que senti com a maior verborreia em formato de asneiras que consegui articular. 
Há emoções que se vestem de palavras fofas, suaves, em flor. Não é o caso do que estava a sentir. Tive pena de não ter um vocabulário de palavras feias mais diversificado para aquelas emoções! Entre o ar de espanto e a surpresa dos meus amigos e as gargalhadas que se seguiram, libertei o sofrimento das 3 horas anteriores e fiquei preparada para o próximo troço.  

4. Encher chouriços. 75% da prova foi espetacular. Mas os outros 25% foram completamente desnecessários. Contrastaram com a beleza e diversidade de tudo o resto. Subidas e descidas gratuitas, por estradões de terra batida e corta fogos, com pedras soltas e sem qualquer interesse. Enquando progredia, pensava naqueles dias de trabalho em que damos o litro, o couro e o cabelo para absolutamente nada! E no final, estamos de rastos, até temos algum trabalho feito, mas não nos sentimos mais inteligentes nem capazes. Estamos muito pior do que no início e não aprendemos nada com isso.

5. A volta ao mundo em 9h30. Das levadas da Madeira aos trilhos dos Açores, das florestas da Pensilvânia nos EUA à floresta negra na Alemanha, da Amazónia ao Vietname, senti que percorri este mundo e o de outros tempos. As Aldeias de Xisto transportaram-me para os contos de fadas e a época medieval. Corri, andei e trepei deslumbrada. Sem ligar ao cansaço e alimentando constantemente o Ahh!

6. É mesmo difícil estar sozinha nos momentos mais duros. Fiz a segunda metade da prova sozinha. Os da frente foram demasiado rápidos. Os de trás, tardaram mesmo! Vi-os ao longe nos momentos mais duros, suficientemente perto para serem avistados, mas longe demais para nos sentirmos.
Senti saudades do pessoal do contra, que vai rogando pragas à organização e dizendo mal de tudo e mais alguma coisa - até da sogra - quando a dificuldade aperta. 

A Lousã, é mesmo uma Serra de Emoções. Ao fim de alguns dias, trago ainda muitas delas comigo. Junto com as paisagens e sensações que ficam para a vida. Hoje, estou bem mais rica por isso. 


* Fotografia tirada pela minha amiga Fátima Emauz no Talasnal (uma das mais famosas Aldeias de Xisto).
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Tenho uma Newsletter semanal chamada Conversas com o Medo. Convido-o a Subscrever se considerar que (re)aprender a relação com o medo é algo do seu interesse.
Obrigada e até já!


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