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14. CULTURAS TÓXICAS E TRAUMA PROFISSIONAL (parte I)

Sentes as batidas do coração na garganta. Tens o estômago apertado e o corpo tenso. Percorres os últimos metros do caminho que te leva ao escritório, olhas para o relógio e abrandas o passo. Queres voltar para trás. Ouves o plim de mais uma mensagem no telemóvel a gritar urgência. Identificas o remetente indesejado de entre as centenas de emails que recebes diariamente. O coração explode. Aguardas o início de uma reunião online, com um nó no estômago e desejas até ao limite das tuas forças que a internet falhe. Imaginas constantemente um rol de razões válidas para justificar a tua desejada ausência.
Lês uma mensagem e pensas em cada palavra antes de responder. Ainda assim, corriges 10 vezes antes de enviar. Estás numa reunião e pensas vezes sem conta no que queres e como queres dizer. Abres a boca, és interrompido ou ignorado e arrependes-te logo de seguida. Ou acabas por não dizer nada aumentando o teu esforço para gerir a ansiedade que entretanto aumentou. A meio do dia, já estás de rastos e sem energia.

Tudo em ti aponta para a fuga. Sair desta situação e contexto o mais rápido que conseguires.

"Só faltam dois dias para o fim de semana. Só mais quatro semanas e estou de férias. É só mais um pouco!"

Isto soa-te familiar? Se a resposta é sim, é muito provável que estejas a sofrer de stress psicossocial relacionado com a tua ocupação ou até mesmo trauma profissional.

O trauma está associado a mal estar psicológico acentuado decorrente da exposição a acontecimentos stressantes ou traumáticos. A duração, frequência, intensidade e gravidade dessa exposição são fatores determinantes para compreender o seu impacto. É importante saber que não são os acontecimentos em si que determinam potencial trauma, mas sim a forma como cada um percepciona os mesmos. Factores como história passada, experiência de vida e características individuais influenciam a forma como percepcionamos os acontecimentos, e por isso o impacto que os mesmos exercem em cada um de nós.

Se estás a sofrer com acontecimentos stressantes ou traumáticos no teu trabalho, algumas consequências poderão incluir:

-  Pensamentos involuntários e recorrentes sobre acontecimentos percepcionados como desagradáveis. ex. a apresentação de um projeto ou relatório, a exposição pública, reuniões de trabalho e/ou interações com determinadas pessoas.

- Mal estar psicológico acentuado quando és exposto a estímulos idênticos ou que façam lembrar os acontecimentos que te causam sofrimento. Mesmo que essa exposição seja em contextos que nada têm a ver com o teu trabalho.

- Vivência persistente de emoções intensas e difíceis de gerir como o medo, culpa, raiva ou vergonha.

- Dificuldade ou incapacidade em sentir emoções satisfatórias como prazer ou alegria.

- Comportamento facilmente irritável e perda do auto-controlo. Sentes com frequência que esta pessoa não és tu, estás fora do teu elemento e a ter reações das quais te arrependes e onde não te reconheces.

- Estado de alerta ou sobressalto, em que te sentes muito mais reativo do que o habitual.

- Dificuldade de concentração e capacidades produtiva e criativa afetadas. Começas a duvidar das tuas capacidades e sentes que estás muito abaixo do teu nível óptimo de funcionamento.

- Alteração de sono - acordas várias vezes durante a noite e tens dificuldade em voltar a adormecer. A insónia pode tornar-se frequente.

- Isolamento e/ou maior dificuldade nas interações sociais.

Porque é que tudo isto acontece?

Passamos grande parte do nosso tempo útil dedicados ao trabalho. Para muitos, é uma das principais fontes de crescimento e realização não só profissional mas também pessoal. O ambiente onde tudo acontece, revela-se crucial para que estas realizações possam ter lugar. A violação da segurança - emocional, psicológica, física e social - é a principal razão para que este ambiente seja sentido como hostil e promotor de stress psicossocial.

Algumas das razões na base deste ambiente hostil onde muitas vezes predominam culturas tóxicas são:

- Má gestão, incluindo falhas no planeamento e dificuldade em definir prioridades. Factores que por si só criam uma grande insegurança nos colaboradores, porque nunca sabem o que esperar ou o que é esperado deles.

- Comportamentos destrutivos nas lideranças de topo que escalam para baixo.

- Pressão constante para trabalho em excesso e fora de horas.

- Racismo, bullying e assédio sexual.

- Intrigas e dinâmicas intimidantes ou hostis entre colegas, muitas vezes espelhando o comportamento das lideranças.

- Inexistência de limites entre a vida profissional e vida pessoal. Os colaboradores sentem que têm que estar sempre "ligados", receando definir outras prioridades ou agendas que não se relacionem com o trabalho.

- Humilhação, indiferença e/ou crítica. Que criam nos colaboradores sentimentos de vergonha, culpa, desvalorização e incompetência.

- Insegurança profissional, a maior parte das vezes relacionada com questões financeiras e contratuais.

Os ambientes que causam mais danos, são também os mais difíceis de identificar e reportar, uma vez que um dos fatores principais é o desequilíbrio de poder entre a liderança de topo e as chefias intermédias. As falhas na comunicação são frequentes e não existe a prática de dar e receber feedback. Quando as lideranças não reconhecem o problema e não apoiam os colaboradores é muito mais difícil para a pessoa potencialmente traumatizada conseguir processar, acabando por se culpabilizar.

As pessoas que vivenciaram trauma no passado, principalmente trauma profissional, terão mais dificuldade em lidar com ambientes de trabalho tóxicos.

As culturas tóxicas, são ambivalentes e contraditórias. Frequentemente são ricas em mensagens empoderadoras e inspiradoras dissonantes das práticas organizacionais predominantemente dominadoras e controladoras. Os colaboradores são instrumentalizados para o alcance dos objetivos da organização, vivenciando um aumento crescente de cansaço, exaustão e perda de capacidade. Há uma diminuição das pessoas em relação às suas competências e capacidades que curiosamente aumenta a dependência das mesmas em relação ao contexto e estrutura organizacional. A auto-desvalorização, dúvida e insegurança crescentes sofridas pelos colaboradores, são a principal razão dessa dependência. 
A vivência deste clima pelas pessoas, cria frequentemente um sentimento de ambivalência - "não estou bem, estou a dar cabo de mim, preciso de sair, isto não é bom para mim" versus "tenho que provar o meu valor, ainda não dei tudo o que tenho, a organização precisa de mim para o alcance dos objetivos".

O que fazer quando se trabalha numa cultura tóxica?

Se já tentaste fazer alguma coisa sem sucesso e se mudar de trabalho/organização não é uma opção neste momento:

- Define limites consistentes e claros entre o teu trabalho e a tua vida fora dele.

- Excepto nas situações em que trabalhas com casos de vida ou morte, encontra formas de ficar indisponível durante certas horas do dia/noite desligando o telemóvel ou as notificações de email ou mensagens.

- Incorpora na tua rotina diária atividades que incluam ritmo e que se tornem "obrigatórias". Ex. prática desportiva, dançar, caminhar, tocar um instrumento musical ou qualquer outra forma de arte.

- Alimenta a tua rede de suporte social e passa mais tempo com pessoas que te fazem bem e com quem podes falar abertamente.

Estas estratégias poderão mitigar temporariamente os efeitos de uma cultura de trabalho tóxica. Não irão resolver o problema se a liderança da organização recusar feedback e não reconhecer o problema, o que significa que nenhuma mudança será implementada. 

Se já tens muitos dos sintomas que descrevi anteriormente, para além de tudo o que referi em cima, aconselho-te a procurar ajuda profissional para iniciares um processo de cura e aprenderes a gerir eficazmente o stress.

É difícil recuperar a confiança profissional após viver num ambiente abusivo e destrutivo. A insegurança e dúvida que se instalam, a par dos danos emocionais, psicológicos e sociais, poderão ser bloqueios que vão condicionar o teu bem estar, crescimento e aprendizagem e que vão precisar de tempo e tratamento para desaparecer. Lidar emocionalmente com o trauma profissional é stressante porque pode desconstruir o teu sentido de onde pertences no mundo profissional e fazer-te pôr em causa o teu propósito de vida. Mas também pode ser poderoso pelas mesmas razões. Dá-te a oportunidade para re-examinar o que não gostas e o que adoras em relação ao trabalho que fazes e descobrir novas formas de o fazer. Passar por este processo abraçando a realidade do que estás a sentir, através de um trabalho consciente e consistente de auto-conhecimento e crescimento, irá a médio e longo prazo tornar-te mais forte.

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Comentários

  1. Congratulations Kátia, I was trapped into reading this from the very first line, very creative and informative.

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