Em Maio de 2022, completei o Ultra Trail de São Mamede com uma sensação agridoce. Uma prova de grande sofrimento, durante pouco mais de 9h. Estava tudo bem. E não estava.
Começou com a primeira subida, após 3 km de prova. E ainda nem estava calor. O meu peito disparou. Sentia o coração no pescoço, na garganta e até nos ouvidos. Fui obrigada a parar pela falta de ar - nunca fiz inspirações tão ofegantes e profundas, e parecia que o ar à minha volta não era suficiente. A cada passo que dava, perdia a força nas pernas e braços e sentia uma dormência crescente. Todos os sinais que o corpo me dava impediam-me do próximo passo, e contrariavam a vontade que tinha em seguir caminho.
Acabei por parar. A ver os outros atletas a passar e a procurar desesperadamente o oxigénio que parecia rarear.
Mentalmente, revi tudo o que tinha feito (ou não) - desde a preparação física, à psicológica e emocional - e não conseguia encontrar a causa do problema. Se fosse um ataque de pânico, seria exatamente isto. Até hoje não sei se foi ou não.
Os primeiros 20 km, foram provavelmente os mais duros de sempre. Numa prova longe de ser difícil, tendo em conta a minha experiência e historial.
"Foi do calor" Disseram os meus amigos no final, que também sofreram com os 40º e a pouca humidade que se fez sentir. Foi também o trail em que socorri mais pessoas. Principalmente os atletas dos 100km, em prova desde a noite anterior, a sofrer com golpes de calor, exaustão e tantas outras maleitas. Cenários pouco encorajadores.
O meu entusiasmo no local da partida, à conversa com estes atletas de endurance, admirando a sua coragem e feitos, e a sonhar com a minha participação numa prova de 3 dígitos, rapidamente se desvaneceu com o que fui assistindo e com a minha própria luta interna.
Estive 2 horas sem conseguir comer. E compreendi os bebés, quando lhes pomos a comida na boca e insistimos para que mastiguem, para recebermos pouco tempo depois uma bola de comida ruminada. Estive assim. A ruminar tudo o que punha na boca, sem conseguir engolir. Achava que isto não era possível. Mais uma lição de vida.
Foi a primeira vez que me passou pela cabeça desistir. Porque não conseguia comer nem correr. Estava mais preocupada com o risco de "atirar a toalha ao chão" do que com o tempo que este sofrimento poderia durar. Escolhi continuar.
No momento das "bestas" - nome muito usado nestas andanças para as "subidas de morte" - já tinha recuperado alguma coisa. E a temperatura elevada, não me afetou. Sentia-me muito mais cansada do que o habitual, mas já com algum fôlego para continuar.
Fiquei zangada com a Serra de São Mamede. A minha perceção da prova e do percurso, contrastava com a dos meus colegas. Não vi nenhuma beleza deslumbrante, não me conectei com o meio envolvente e só via os corta-fogos intermináveis, a rasgar a Serra, roubando-lhe o seu encanto.
Terminei a prova. Mas com a sensação de vazio, de ter deixado alguma coisa por fazer.
Pode ver aqui no meu canal do instagram , um pequeno video que fiz desta aventura, com as fotografias e filmes que as minhas queridas amigas Fátima Emauz e Maria João Borges tiraram ao longo de todo o percurso. A dada altura, saber que me esperavam, foi um dos maiores incentivos para continuar. A 15 de Janeiro de 2023, voltei à Serra de São Mamede, para o Ultra Trail dos Reis. Tinha 4 objetivos para esta prova:
- Desfrutar
- Conectar com os meus novos colegas do Clube Trilhos do Costume
- Fazer as pazes com a Serra de São Mamede
- Cumprir com as barreiras horárias e terminar a prova
Tinha plena consciência que este último, seria o objetivo mais difícil de alcançar.
Ao fim de 33 km, fui impedida pela organização de continuar. Falhei a barreira horária das 6h30 por 15 minutos. Emoções difíceis de gerir.
Cheguei à meta numa carrinha da organização. A olhar para os atletas mais rápidos que entretanto terminavam com grande festa a sua aventura. Acho que nunca olhei tanto tempo para a manga da meta.
Podemos racionalizar muito, mas a primeira vez que recebemos um DNF (Did Not Finish), dói a sério!
A boa notícia, é que fiz as pazes com a Serra de São Mamede. Nos 33km em que por lá andei, diverti-me à brava, adorei cada segundo e deslumbrei-me com esta Serra magnífica que continua a ter tanto para me ensinar. Quando fecho os olhos, ainda navego pelas linhas de água e percursos serpenteantes, no meio da montanha e da floresta.
E já não tenho a sensação de que ficou alguma coisa por fazer. Arrumei um assunto do passado.
Se permitirmos, uma experiência de insucesso pode trazer-nos das melhores aprendizagens. Como lido com a falha, o que ela representa nesta fase da minha vida mas mais importante, como vai influenciar os meus próximos passos.
Não sei se volto a fazer o Ultra Trail dos Reis. Não retiro grande prazer em repetir provas. Mas entretanto, consegui inscrever-me nos 60 km do MIUT . Uma prova para a qual é necessário atestado médico e pontos - conseguidos pela participação em outros trails com um nível de dificuldade semelhante.
Hoje sinto-me muito mais rica. Não vou embarcar na história do herói que não ganhou a medalha mas que é na mesma aplaudido por todos. Este capucho não me serve. Mas fiz o meu processo interno de atribuição de significado de tudo o que estas experiências representam. Porque uma história, não deve ser a história de todas as histórias.
A Serra de São Mamede é merecedora de todo o meu respeito. Dar-lhe uma segunda oportunidade e aceitá-la no meu caminho de reparação e reconciliação, foram aspetos chave do meu percurso. Tal como aceitar que preciso de mais pedalada para aventuras como o ultra dos Reis.
*Fotografia tirada pelos fotógrafos do Ultra Trail dos Reis, 15 Janeiro 2023
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